Trabalho.
O termo alemão Ungeziefer significa “animal impuro de seis patas, que não pode ser comido”. Franz Kafka, sem êxito, insistiu para que o Ungeziefer não fosse representado como uma barata na capa de A Metamorfose. Ou melhor, de A Transformação a forma correta de traduzir Das Verwandlung.
Gregor Samsa não havia se metamorfoseado. Não tinha mudado de fase. Ele era ele mesmo. Um funcionário comum transfigurado sem o desejar. O que o aterrorizava não era ter se transformado em um inseto convexo dos dois lados, barriga e costas, parecido com um besouro, mas sem asas. O que o aterrorizava era pensarem que a sua conversão tinha sido voluntária. Que tinha sido uma desculpa para faltar ao emprego. Tanto que a pessoa que a sua família primeiro procurou foi seu chefe.
Kafka, um advogado especialista em acidentes de trabalho, sabia que as organizações nos obrigam a não sermos nós mesmos. Exigem que ultrapassemos o nosso limite e sejamos o Outro. O quimérico inalcançável funcionário padrão. Sabia, igualmente que, como Marx fez constar em O Capital, o ser humano é proprietário da sua força de trabalho, mas que não é livre para a usar como queira. A sua própria necessidade de sobrevivência o obriga a vendê-la sob condições que não escolheu e que não determinou.
Na mente de Samsa – e dos pequenos burgueses empedernidos – a falta ao trabalho corresponde a uma negação ativa. Um termo da física, que distingue a negação passiva – o repouso – da negação ativa, que é o mesmo movimento no sentido contrário. A falta ao trabalho seria deixar de fazer o que se espera que um ser humano faça. Seria ir contra o movimento adequado.
A aflição de Sansa decorria de ser vítima da crença na falsa emancipação dada pelo trabalho. Uma estratégia de sujeição que se apoia na irreversibilidade; na impossibilidade de reaver a vida gasta comprando-a de volta. Esse ardil, próprio da economia contemporânea, só isenta de trabalhar o ser humano incapaz – a criança, o enfermo ou velho -, cujo esforço não é rentável para o contratante ou para o governo. A transformação do ser humano em um inseto denuncia a perversão do Sistema de só desobrigar da servidão os inutilizados e os excedentes.