Notas.
Viver na estrita observância de uma religião ou de uma ideologia é sustentar um mundo injusto. Mais do que isso. É um estimulo para o imobilismo social e para a paralisia intelectual.
Hermano Roberto Thiry Cherques
Viver na estrita observância de uma religião ou de uma ideologia é sustentar um mundo injusto. Mais do que isso. É um estimulo para o imobilismo social e para a paralisia intelectual.
Hermano Roberto Thiry Cherques
Qual ser humano perde mais da sua humanidade: o bárbaro que surra e escraviza a mulher ou o civilizado que ordena a matança de milhões de pessoas por razões ideológicas?
Inútil procurar argumentos definitivos de justificação para qualquer das condutas. Não há resposta universal para situações particulares. Os registros antropológicos mostram que o impensável em uma cultura é aceitável para outra. As experiências internas às formas de vida geram dilemas que exigem decisões imediatas, alicerçadas unicamente nas emoções.
Mesmo na nossa cultura, quantos pais e mães abandoaram os filhos para seguir um amor romântico? Talvez um número equivalente ao daqueles que permaneceram ao lado dos filhos apesar do chamado de um amor extrafamiliar.
Os conflitos entre valores são insolúveis pelo raciocínio teórico. A estrutura do pensamento humano, composta por categorias e pelas normas de articulação entre elas, é abstrata. O seu conteúdo é infenso à especificação exaustiva e cabal. Não há moeda comum para a comparação entre valores. As hierarquias axiológicas são dadas à sentimento.
Le soleil ni la mort ne se peuvent regarder fixement.
La Rochefoucauld, François de (1664) Réflexions ou sentences et maximes morales
Desde a Antiguidade, as designações do que entendemos pelo termo “trabalho” referem a categorias disparatadas. Se remontamos à Hesíodo, quem afirmou que “a preço de trabalho os deuses nos vendem todos os bens”, temos o conceito teológico. Depois temos a ideia intelectual, a da contestação a Anaximandro, de que é a inteligência que faz o ser humano superior aos animais. Os pré-socráticos honravam tão somente as atividades intimamente vinculadas ao progresso do conhecimento – a medicina, a navegação, a arquitetura -, em que o trabalhador era também demiurgo. Esse entendimento está presente em Tales de Mileto, que preferia que esquecessem que, além de filósofo, era o que hoje denominamos engenheiro hidráulico. Continuar lendo
Marx acertou em cheio quando mostrou que o mercado de trabalho instaura a mercantilização da existência.
Hermano Roberto Thiry Cherques
Os cientistas inventam e descobrem. Mas não por fazerem ciência. A prática científica é mediata e deliberada enquanto a heurística é imediata e casual. O cientista se dedica a solucionar, a decifrar, a deslindar. O descobridor ou o inventor a intuir e a improvisar. A ciência é analítica e progressiva. A heurística é sintética e repentina.
A marcha científica vai na direção a um fim posto ou suspeitado. O evento heurístico é de geração espontânea. A ciência busca o que deve estar lá (tese) ou que talvez esteja lá (hipótese). A heurística dirige-se para o que não está lá. O processo cientifico é um apurar. O ato heurístico é um deparar.
Ocorrem descobertas e invenções durante o processo científico, mas são eventos oriundos do acaso e da percepção nua.
Os conceitos têm vida independente do seu conteúdo. A expressão “sobrevivência do mais apto” é de Herbert Spencer, cunhada quatro anos depois da Origem das espécies, e o termo “evolução”, igualmente darwinista, só passou a figurar a partir da 6ª edição da obra.
Hermano Roberto Thiry Cherques
O clamor pela instauração de uma ordem social tirânica é revivido a cada abalo da democracia representativa. Esses achaques são recorrentes. As democracias tendem à fadiga, tendem a se tornarem despóticas, ainda que seja o despotismo da maioria, da média, da mediocridade.
A convicção anarquista é de que o passo evolutivo para a plenitude democrática se orienta para um sistema em que se obedeça a lei pactuada sem necessidade de alguém que a faça obedecer. Para um regime que seja governado pela responsabilidade e não pelo comando, pela convicção e não pela sujeição.
O progresso no sentido contrário à tirania é sempre lento e doloroso. As pessoas de índole ou parecer libertário sabem da dificuldade. Sua ambição é modesta: ampliar o espectro dos regimes orientados pelo princípio da representatividade, do voto, do mandato, das decisões majoritárias e, simultaneamente, reduzir o seu poder de interferir sobre a vida privada.
A doutrina é a de que o cratos, o poder, deve se abrir para a liberdade de reivindicar cada vez mais liberdade. Não se trata de suprimir o poder hierárquico, mas de preservar a sociedade contra o abuso do poder. De a fortalecer para que possa resistir a ser arbitrariamente ordenada.
“Comentário da Frank Zappa diante do Comitê do Senado americano sobre a censura a músicas com letras ambíguas: é uma tolice, é como curar a caspa pela decapitação.”
A filosofia moral, influenciada por Wittgenstein rejeita o essencialismo, a doutrina da natureza humana estática. Afirma que, da mesma forma que as crianças captam as práticas e regras da família ou que adquirem um determinado sotaque, nós traduzimos todo conceito para o espaço-tempo social ao qual pertencemos.
Do ponto de vista não-essencialista, a eticidade decorre invencivelmente da forma de vida em que estamos imersos e da nossa inserção nela. A conduta moral é conformada pelo que, em outra chave, Bourdieu denominou de habitus: o sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações.
A comunicação instantânea intensificou o que Wittgenstein havia assinalado. Mediante abstração imaginativa, habilitamo-nos a reconhecer que outras formas de vida admitem o incesto, o assassinato religioso e práticas segregacionistas que são, para nós, desconhecidas, estranhas e repugnantes.
O problema ético que hoje enfrentamos é menos o da intolerância do que o da diluição das identidades. A destribalização – um termo criado por McLuhan – nos fez esquecer que decodificar os conceitos morais de outras formas de vida não significa que devamos as compartilhar, aceitando passivamente uma aculturação degradante.
“Uma comissão consiste de uma reunião de pessoas importantes que, sozinhas, não podem fazer nada, mas que, juntas, decidem que nada pode ser feito.”
Fred Allen
O termo alemão Ungeziefer significa “animal impuro de seis patas, que não pode ser comido”. Franz Kafka, sem êxito, insistiu para que o Ungeziefer não fosse representado como uma barata na capa de A Metamorfose. Ou melhor, de A Transformação a forma correta de traduzir Das Verwandlung.
Gregor Samsa não havia se metamorfoseado. Não tinha mudado de fase. Ele era ele mesmo. Um funcionário comum transfigurado sem o desejar. O que o aterrorizava não era ter se transformado em um inseto convexo dos dois lados, barriga e costas, parecido com um besouro, mas sem asas. O que o aterrorizava era pensarem que a sua conversão tinha sido voluntária. Que tinha sido uma desculpa para faltar ao emprego. Tanto que a pessoa que a sua família primeiro procurou foi seu chefe.
Kafka, um advogado especialista em acidentes de trabalho, sabia que as organizações nos obrigam a não sermos nós mesmos. Exigem que ultrapassemos o nosso limite e sejamos o Outro. O quimérico inalcançável funcionário padrão. Sabia, igualmente que, como Marx fez constar em O Capital, o ser humano é proprietário da sua força de trabalho, mas que não é livre para a usar como queira. A sua própria necessidade de sobrevivência o obriga a vendê-la sob condições que não escolheu e que não determinou.
“Afirmar que os moderados têm sempre razão e os extremistas estão sempre errados equivale a raciocinar como extremista.”.
Hermano Roberto Thiry Cherques
A atenção sem a percepção é aberrante. E, no entanto, assim parece ser o ato heurístico, o episódio mental que ocorre sem antecedentes identificáveis. Santo Agostinho talvez tenha sido o primeiro a descrever esse paradoxo. Dizia que a descoberta e a invenção ocorrem porque o sentido da palavra “habita” a psique humana. De modo que o entendimento súbito vem de uma “simples e secreta percepção”, inoculada pela divindade e despertada pela contemplação que “acorda” o conhecimento.
Em que pese a autoridade agostina, a capacidade de apreender dada por uma “luz interior” nunca pode ser provada. Descartes tentou superar a dificuldade partindo do inquestionável para, sobre ele, exercitar a dúvida sistemática. Mas, ante o paradoxo da inquirição absoluta, em que mesmo a dúvida pode ser colocada em dúvida, regrediu à afirmação da existência ontológica do pensante (… ergo sum) outorgada pela divindade.
“Enquanto isto o tempo prossegue em seu trabalho imemorial de fazer todo mundo parecer merda e sentir-se como tal”.
Amis, Martin (1991). London Fields. Vintage Publishing. UK
A inclusão digital acelerou a degradação dos consumidores ordinários. Do seu lado, as pessoas capazes de abstração preferiram isolar-se e proteger-se a investir na elevação das multidões.
Abandonada, a população ignorante instaurou o “individualismo de massa”, a pseudoliberdade de agir como “todo mundo”, descrita por Lipovetsky. Os membros dessa maioria vivem na ilusão de que elaboram seus próprios critérios. Não se dão conta de que a liberdade que se lhes concede é a da falsa opção, a de escolher, como uma vez disse Henry Ford, qualquer cor de automóvel, desde que seja preto.
A emergência dessa situação foi antevista por Habermas em 1962, antes de se tornar famoso. Dizia ele: vivemos os tempos da comunicação vazia, da coletividade que não se comunica, de indivíduos incapazes de dialogarem consigo mesmos. Um amalgama de gente informada sobre o irrelevante e o falso. Pessoas vulneráveis, sujeitas a serem usadas e abusadas.
Ao cabo, a massa faz-se geleia geral, um termo criado por Décio Pignatari para definir a comunidade que vive ao mesmo tempo com as novidades inúteis e com as tradições que perderam sentido. Uma configuração social que nem os marxistas beatos dos anos 1950 identificaram: a dos seres humanos manipulados pelas “elites”, mas, também, pelo “partido interno”.
Vivemos como se escolhêssemos livremente como agir e o que fazer, mas escolhemos dentre opções já dadas, limitadas física, psíquica e culturalmente.
Ou seja: não escolhemos.
Shaun Nichols, professor de filosofia de Cornell, ao comparar o guia de boas maneiras vigente no sec. XVI (De civilitate morun puerorum, de Erasmo) com as normas contemporâneas, verificou que as regras que interditam condutas desagradáveis, como assoar o nariz na própria roupa, seguem praticamente inalteradas em 90% dos casos. Em oposição, as regras que interditam ações não-desagradáveis, como a do guardanapo que não pode ser pousado a não ser no antebraço esquerdo do comensal, caíram em desuso na razão de 70%.
A conclusão de Nichols é a de que as normas que interditam as condutas desagradáveis têm uma origem lógico-higiênica precisa. A um determinado momento de um trânsito cultural, elas entram em consonância com a ciência e as disposições do espírito humano. Conformam mecanismos psicológicos que contribuem para a reprodução das condutas morais, sanitárias, das crenças, dos costumes, … ainda que não as conservem intactas, são transmitidas por preservarem sua utilidade para o convívio social.
O autor e a autoridade são conceitos antagônicos.
São como a autoria e o autoritarismo.
Os primeiros dizem respeito à invenção e à descoberta.
Os segundos dizem respeito à conservação e à interdição.
A troca e a dádiva pertencem a dois universos distintos. No primeiro se pensa em utilidade e retribuição. No segundo, em gratuidade e reconhecimento.
A troca deve ser simétrica. A dádiva é, por natureza, assimétrica. Mas existiria uma proporcionalidade?
A dádiva consiste sempre em privar-se de alguma coisa. O que dá afeição, cuidado, conhecimento e mesmo uma simples informação priva-se de um bem inegociável, o tempo. O tempo é um valor essencial, o mais precioso talvez, mas que não cabe traduzir em utilidade. Sua retribuição importa à consciência moral e ao vinculo comunitário.
A doação do trabalho – o assistencialismo, o voluntariado, a ciência pela ciência – raramente se apresenta como resultado de um altruísmo perfeito e desinteressado. Muitas vezes compreende a presunção de restituições. O que doa anonimamente recebe em troca satisfações não mensuráveis e não presentes. Nulas em termos econômicos, mas valiosas em termos psicossociais.