Caminhar – estratégia heurística.

Epistemologia.

Aristóteles ensinava caminhando no peripatos, uma alameda situada nos jardins do Liceu. Nessas andanças, mestre e discípulos discutiam as questões filosóficas mais profundas. Emanuel Kant, todos os dias, às três e meia da tarde em ponto, saía de sua casa para um passeio na alameda de tílias que hoje se chama Passeio do Filósofo, em Königsberg. Rousseau deixou escrito que “vagar com bom tempo, numa terra bonita, sem pressa, e ter por fim da caminhada um objetivo agradável: eis, de todas as maneiras de viver, aquela que mais me agrada”.

Thoureau foi um caminhante. Dizia que os passeios solitários o tornavam criativo. Nietzsche percorria diariamente longas distâncias por cerca de 6 a 8 horas e depois se entregava a uma escrita incessante, na qual colocava as ideias então surgidas. A consolidação máxima das suas peregrinações sem destino consta de uma carta publicada no livro O Viajante e sua sombra: “Tudo, … escreveu … a não ser por algumas linhas, foi pensado durante os trajetos e rabiscado a lápis em seis caderninhos”. Também na A Gaia Ciência encontra-se o aforismo: “Não escrevo apenas com a mão: o pé também quer estar presente”.

O perambular nos deixa disponíveis à recepção de formas e ideias difíceis de encontrar em repouso ou na marcha intencional. Beethoven caminhava em círculos no seu quarto. Darwin pelo jardim. Rimbaud passeava a esmo. Freud, depois do almoço. Einstein, flanava. Até hoje Stephen King caminha pela manhã. Pessoas tão diferentes que tiveram e têm no caminhar a estratégia para a renovação do espirito que leva à descoberta e à invenção.

UTILIZE E CITE A FONTE.
CHERQUES, Hermano Roberto Thiry, 2023 – Caminhar – estratégia heurística. –  A Ponte – https://hermanoprojetos.wordpress.com/2023/10/13/caminhar-estrategia-heuristica/
REFERÊNCIAS:
Frederic Gros (2021) Caminhar, uma Filosofia. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo. Ubu Editorial
Nietzsche, Friedrich (2016) Obras completas. Kindle Español. Tecnos Edición

O quase-nada.

Perplexidades.

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O quase-bem não é o Bem, como o quase-mal não é o Mal. A ponderação – de Vladimir Jankélévitch, a partir de Bergson – parece óbvia. Mas não para todos. Os kantianos e hegelianos de várias extrações recusam-se a aceitar essa zona intermediária e nevoenta. Outros confundem o quase-nada com o “quase” da aproximação escalar.

Enganam-se. O quase-nada não é um tertium quid entre o ser e o não-ser. É uma noção que corresponde a uma experiência concreta, mas não corresponde a um conceito puro. O exemplo canônico é o de que entre o Sócrates vivo e o Sócrates morto inexiste um Sócrates simultaneamente não-vivo e não-morto. Um quase-ser ou um quase-alguma-coisa. O quase-nada é um pouquinho, um bocadinho, um tiquinho ao final de um crescimento ou decrescimento; ao termo de uma inflação ou de uma deflação.

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Pensar o Trabalho: Ensaios Mínimos.

Notícias.

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Sumário geral do livro PENSAR O TRABALHO:

Apresentação 1
O trabalho antes do trabalho. 6
Atrahasis – Nascidos para trabalhar. 8
Prometeu – O trabalho arcaico. 10
O trabalho adâmico. 12
O trabalho grego. 14
Heráclito de Éfeso: o trabalho flui com a vida. 16
Platônica alienação. 21

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Pensar o Trabalho: Ensaios Mínimos.

Notícias.

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Autores citados em PENSAR O TRABALHO:

Adorno, Theodor
Agamben, Giorgio
Andersen
Anequin, J. Claval-Lévêque. & Favory, F.
Arendt, Hannah
Aristóteles
Ayto, John
Bakunin, Mikhail
Barthes, Roland
Bauman, Zygmunt
Ben-Ami, Bartal Inbal
Benjamin, Walter

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Pensar o Trabalho: Ensaios Mínimos.

Notícias.

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O trabalho é um fenômeno cultural. Sua apreciação envolve entendimentos e ênfases próprios da modalidade de coesão sócio-econômica-política em que se insere. Pensar o trabalho implica em nos colocarmos no “estado de espírito” de cânones teóricos e de representações cuja integridade e inserção metodológica são informes e instáveis.

Assim, a disposição desse livro é a de um mosaico. Um conjunto de comentários justapostos, derivados da observação direta e da literatura filosófica e profana. Cada ensaio acrescido reconfigura o mosaico, produzindo um quadro pluridimensional móvel.

O termo ensaio tem a conotação original de tentativa. O termo mínimo não é modéstia, mas constatação. O conjunto de pequenos textos que integram o livro conforma uma totalidade provisória, uma episteme, como os pixels configuram uma imagem. O modo de perceber, de conceituar, de definir e de agrupar os elementos pode e deve ser articuladoa e desarticulado conforme queira o leitor.

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O horizonte perdido.

Perplexidades.

No sentido filosófico do termo, horizonte (gr. hörízon, dividir) é a linha imaginária que circunscreve o campo da nossa relação com os outros e com o mundo. O conceito foi introduzido por Anaximandro (s. VI ac), quem o considerou como sendo o Princípio (apeiron) que abraça todas as coisas e as dirige.

O horizonte está continuamente em expansão, em retração e em movimento para o presente (interação), para o passado (recordação) e para o futuro (antecipação). Há sempre algo por lembrar e algo por vir; algo que nos acompanha e algo que nos deixa. À diferença do limite e da fronteira, para onde quer que caminhemos estamos sempre no centro de um horizonte. O nosso.

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Provável acaso.

Perplexidades.

Na tentativa de conciliar a Lei, o Senso Comum e o Livre Arbítrio, os jesuítas do século XVII diziam que a opinião provável é a que conta com “partidários respeitáveis”, as autorictae teológicas. A justificativa era a de que o probabilis, do lat. probare, digno de aprovação, pertence ao campo da opinio, não da scientia. Data, portanto, do início da Idade Moderna o parecer sobre a impossibilidade de calcular a transmutação daquilo que poderia ser naquilo que efetivamente será.

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Fontes da filosofia moral: Husserl – a razão enquanto sentimento.

Ética.

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Phthonos, a inveja, é um dos dois sentimentos que Aristóteles evoca como vetores da indignação (nêmesis). O outro é a epikhairekakia, alegria-com-o-mal-alheio, o riso quando vemos uma pessoa cair da cadeira, por exemplo.

Muito se tem dito sobre a inveja, um dos sete pecados capitais. Muito se tem calado sobre o prazer com o infortúnio dos outros. No entanto, esse estado afetivo não nos é desconhecido. O nosso “bem feito!” e o alemão Schadenfreud, o expressam de diferentes ângulos.

As advertências contra a phthonos e a epikhairekakia chegaram ao século XX sem que surtissem qualquer efeito prático. No plano teórico, foi somente Husserl, ao detalhar a intersubjetividade, quem mostrou a desrazão moral dos sentimentos negativos.

O argumento de Husserl é o de que percebemos os outros primeiro como intuição direta de corporeidade física. Depois, intencionalmente, transpomos no nosso imaginário a sua experiência psíquica. Essa “intersubjetivização” gera a normativa de que o semelhante não é qualquer-um, mas um análogo de mim mesmo, um ente que apreendo empaticamente. Origina-se aí a lógica do preceito moral do deslocamento das posições. De sentirmos como se fossemos o outro, de tomarmos o outro como se fosse nós.

Segundo a ética fenomenológica de Husserl, o ser humano sensato não adverte sobre a razão de todos, como queria Aristóteles; não legisla sobre a alteridade, como queria Kant; não se reconhece na alteridade, como queria Hegel. Apenas se indigna quando o outro sofre ou quando deixa de ser aceito tal como é.

 

UTILIZE E CITE A FONTE.
CHERQUES, Hermano Roberto Thiry, 2021 – Fontes da filosofia moral: Husserl – a razão enquanto sentimento. A Ponte: pensar o trabalho, o trabalho de pensarhttps://hermanoprojetos.com/2021/09/01/fontes-da-filosofia-moral-husserl-a-razao-enquanto-sentimento/

 

REFERÊNCIAS:
Aristóteles (1987). Ética a Nicômaco; São Paulo; Nova Cultural.
Hegel, Georg Wilhelm Friedrich (1992). Fenomenologia do espírito. Tradução de Paulo Menezes. Petrópolis. Vozes
Husserl, Edmund (2001). Meditações cartesianas. [5ª meditação] Trad. Frank de Oliveira. São Paulo: Madras, 2001
Kant, Immanuel (2009). Fundamentação da metafísica dos costumes (1786). Tradução nova com introdução e notas por Guido Antônio de Almeida. São Paulo. Discurso Editorial e Barcarolla.

O ser abstrato e inconsútil das ciências sociais.

Epistemologia.

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Todo ser humano é dotado de razão, mas a capacidade intelectiva e a destreza social são diferentes para cada pessoa.

As estruturas como as do parentesco, da vida social, das formas de educar tendem a ser tomadas como naturais. Não o são. São impessoalidades constituídas socialmente. São recalques adquiridos internamente a “formas de vida”, no sentido de Wittgenstein dá ao termo.

A maior parte das nossas ações são inconscientes, ou por serem reflexas, como as expressões do rosto; ou por serem miméticas, como a forma de estarmos em repouso. O “núcleo comum” das faculdades intelectuais é pessoal em intensidade e indeterminável o seu conteúdo.

Por isso, as ciências sócio-humanas têm pouco a dizer sobre o ato heurístico. Identificam e descrevem o que há de comum, o que há de reflexo e o que há de mediano. Esquadrinham o consciente coletivo. Mas desconsideram o âmago irreplicável dos espíritos singulares.

UTILIZE E CITE A FONTE.
CHERQUES, Hermano Roberto Thiry, 2021 – O ser abstrato e inconsútil das ciências sociais. A Ponte: pensar o trabalho, o trabalho de pensarhttps://hermanoprojetos.com/2021/03/31/o-ser-abstrato-e-inconsutil-das-ciencias-sociais/
REFERÊNCIAS:
Berlin, Isaiah (2000). The proper study of mankind: An anthology of essays. New York. Farrar Straus Giroux.
Kant, Imanuel (2005). Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Valerio Rohden e Antonio Marques. Rio de Janeiro. Forense Universitária (I, I, §4)
Wittgenstein, Ludwig (2009) Investigações filosóficas. Tradução de Marcos G. Nontagnoli. Petrópolis. Vozes [§ 293]

Fontes da filosofia moral: Nietzscheniana.

Ética.

As postulações morais egressas dos diversos campos da humanidade mantêm-se na superfície dos fatos. Tratam de eclipsar as questões mais difíceis. Evitam a suspeição analítica e epistemológica sobre os julgamentos de valor.

E, no entanto, hoje, mais do que nunca, é necessário lançar dúvidas sobre nossas convicções éticas. É urgente debater as nossas crenças sobre a racionalidade das condutas, a boa vontade geral e a imparcialidade dos juízos morais.

O transtornado mundo em que vivemos não pode prescindir dos que se disponham demonstrar a fragilidade dos argumentos sancionados. Não para destruí-los, mas para abrir caminho a vidas esclarecidas.

Um ceticismo psicologicamente e historicamente situado seria benéfico para romper com o marasmo das verdades aceitas e dos academicismos estabelecidos. Precisamos restaurar Nietzsche, cujo legado não se limita a ter inspirado pensadores como Heidegger, Wittgenstein, Buber, Freud, Menken ou Foucault. Nem se restringe a ter demonstrado a impossibilidade de uma ética isenta. Cujo legado maior foi o ter evidenciado o imperativo de uma filosofia moral lúcida.

 

UTILIZE E CITE A FONTE.
CHERQUES, Hermano Roberto Thiry, 2020 – Fontes da filosofia moral: Nietzscheniana. A Ponte: pensar o trabalho, o trabalho de pensarhttp://hermanoprojetos.com/2020/09/16/fontes-da-filosofia-moral-nietzscheniana/

Para além do normativo e do empírico, o pluralismo.

Ética.

Igor Morski

Desde a segunda metade do século XX, a filosofia moral apresenta duas vertentes: a prescritiva e a derivada das situações concretas.

A ética prescritiva evoluiu para uma crítica conceitual. É o caso da fenomenologia e seus avatares, que abriga perspectivas que vão desde a de Ricœur, que propõe um minimalismo axiológico baseado na reciprocidade e na Regra de Ouro, até a de Levinas, que propõe uma relação intransitiva, na qual o sujeito é “refém” do “Outro”.

Assentada na realidade das situações concretas, a reflexão analítica, de origem anglo-saxã, faz uso das teorias normativas somente para as reformular. Critica filosoficamente, isto é, baseando-se na gnoseologia e na axiologia, as análises genealógicas (Nietzsche) das situações efetivas, e os impasses, como o do princípio de respeito à pessoa humana (Kant).

As divergências entre a convicção do justo como normatizável e do justo como mutável foram atenuadas pela inclusão da sensibilidade (G.E. Moore & emocionalistas), da solidariedade e do engajamento (Sartre) na discussão moral. As duas vias filosóficas chegaram mesmo a convergir pela influência, nos dois lados do Atlântico, de obras como as de Michel Foucault, quem trouxe à evidência que por detrás de um “progresso moral” é preciso ver a interiorização dos sentimentos de vergonha e de culpa que transformam os seres humanos em animais dóceis.

O normativo e o empírico se entrelaçaram. Mas, por impossibilidade lógica, não têm como se mesclarem. É certo que uma vertente se nutre da outra, e que ambas têm como meta a melhoria das condições de vida humana. No entanto, ao não dissolverem nem resolverem o problema do convívio na diferença, legam ao pluralismo ético o caminho que resta para ordenar a coexistência de pessoas que abraçam convicções morais incompatíveis entre si.

 

Leopoldo e Silva, Franklin. (2006) O Imperativo Ético de Sartre. In: Novaes, Adauto (Org.). O silêncio dos intelectuais. São Paulo: Companhia das Letras.
Levinas, Emmanuel. (1998). Éthique comme philosophie première. Paris. Éditions Payot & Rivages.
Lorezini, Daniele et alli (2013) Michel Foucault: éthique et vérité: 1980-1984. Paris. Vrin
Moore, George Edward (1999) Principia ethica. Trad. de Maria Manuela Rocheta Santos e. Isabel Pedro dos Santos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Rawls, John (1997) Uma teoria da justiça. Tradução Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo. Martins Fontes.
Ricœur, Paul. (1991). O si-mesmo como outro. Tradução de Luci Moreira Cesar. Campinas, Papirus.
Sartre, Jean-Paul (2009). O ser e o nada: Ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis. Vozes.

 

UTILIZE E CITE A FONTE.
CHERQUES, Hermano Roberto Thiry, 2020 – A conciliação pluralista. A Ponte: pensar o trabalho, o trabalho de pensarhttp://hermanoprojetos.com/2020/08/26/para-alem-do-normativo-e-do-empirico-o-pluralismo

A conciliação pluralista.

Ética.

O ser humano tende à obstinação ante ao impossível. Seja procurando encontrar a fonte da juventude eterna, seja cogitando sobre como desfazer a maionese, seja tentando unificar os fundamentos morais, queremos o que não se pode ter.

Embora saibam ser absurda a ideia da fusão de escolas filosóficas, muitos teimam em integrar as lógicas das éticas formal-procedural (inspiradas em Kant) e substantivas-tecnológicas (inspiradas em Aristóteles).

Nas primeiras, as exigências se prendem à imparcialidade, o que leva à postulação de princípios universais. Mas estas formas de pensar não são suscetíveis de traslado à realidade moral. Por isso, dão a sensação de negligência para com o dever. Terminam por gerar culpa e remorso.

Nas éticas substantivas-tecnológicas as exigências morais se dirigem à busca de uma vida virtuosa, isto é racional. Como não se pode manter para sempre uma conduta inequívoca, essa linha de pensamento acaba por gerar desprezo e rebeldia, inclusive em relação a si mesma.

Ainda assim, subsiste a tendência, aparentemente irrefreável, de procurar a solução dessas contradições mediante a fusão dos quatro paradigmas que regem a filosofia moral contemporânea: o analítico, o fenomenológico, o hermenêutico e o da ação comunicativa.

A inviabilidade da empreitada é patente. A filosofia analítica trata o sujeito moral como estando isolado e destacado da sociedade. A fenomenologia requer a internalização do Outro como si mesmo. A hermenêutica analisa as relações morais, mas não as soluções para os conflitos. Por último, a ética da comunicação propõe o impraticável: que seres humanos sinceros, dispondo das mesmas informações, capacidades e vontade de encontrar a solução mais vantajosa para cada um e para todos, se expressem autenticamente em um debate público, onde cada um tomaria a palavra e ouviria atentamente os argumentos dos demais.

O pluralismo ético, o convívio sem o consenso, sugere pacificar a dissenção entre esses paradigmas mediante a coabitação justaposta.

Ao postular a transigência em lugar da homogenia, o pluralismo abre-se para o reconhecimento do diferente como diferente. Como não parece ser possível a coabitação sem normativas, incorpora como dever moral unicamente o respeito às convicções alheias, a lealdade nas relações humanas, a inclusão dos marginalizados e o cuidado para com os desvalidos.

Cf. Honneth, Axel (1995). The fragmented world of the social. New York. Suny Press.

 

UTILIZE E CITE A FONTE.
CHERQUES, Hermano Roberto Thiry, 2020 – A conciliação pluralista. A Ponte: pensar o trabalho, o trabalho de pensar http://hermanoprojetos.com/2020/08/05/a-conciliacao-pluralista

NOTAS: A Face Oculta do Parecerista.

Notas.

Nesse artigo exponho discussões éticas sobre o processo de avaliação de mérito de trabalhos científicos. O sistema de revisão cega pelos pares em periódicos, partindo do debate sobre as pressões para publicação presentes na comunidade acadêmica de Administração no Brasil.

Clique aqui para ler o artigo na íntegra.

UTILIZE E CITE A FONTE.
Dilthey, Wilhelm; Introduction a l’etude des sciences humaines: essai sur le fondement qu’on pourrait donner a l’etude de la societe et de l’histoire ; Paris: Presses Universitaires de France, 1942.

__________ ; La esencia de la filosofia; Buenos Aires; Losada; 1952

 

ÉTICA: A ética do antes e do depois.

Ética.

O suspense tecnológico mostrado por Spielberg em Minority Report externa um paradoxo insolúvel: o juiz que mata os criminosos futuros, que assassina as pessoas que cometerão crimes, faz com que o crime não seja cometido, mas mata um inocente.

O futuro jamais oferece parâmetros éticos aceitáveis. O tempo, irreversível, obriga a que os princípios morais não se antecipem nem posterguem. Ademais, os predicados analíticos – bom, justo, valioso – e os predicados normativos – necessário, interdito, recomendável –, diferem entre os povos e as gerações.

Kant achava inconcebível que a marcha da humanidade fosse a construção de uma morada que apenas a última geração pudesse habitar. Tinha razão. Estenderia, se vivo fosse, a advertência sobre a imoralidade da redenção futura ao improvável advento da ordem perfeita ou do igualitarismo social.

O problema ético do antes e do depois é embaraçoso. Nem o mérito, nem a culpa retroagem. Na antecipação castiga-se o inocente. Na postergação, os culpados e as vítimas já terão deixado de existir.

UTILIZE E CITE A FONTE.
Kant, Immanuel (2010). Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Tradução de Artur Mourão. São Paulo. Martins Fontes.
Minority Report (Filme) (2002). Direção Steven Spielberg. USA. 20th Century Fox Corporation.

EPISTEMOLOGIA: Heurística – O enigma da invenção.

Epistemologia – Heurística.

Paul Klee – Senecio

O descobrir corresponde à revelação do desconhecido. O inventar corresponde à geração do novo. Descobre-se a América. Inventa-se o avião. 

Kant foi o primeiro filósofo a romper com a rotina de unir a imagem e a imaginação. Ambas são representações de objetos ausentes, mas a imagem tem, para ele, uma “função reprodutiva”, a de descobrir. Já a imaginação é uma capacidade de combinar significados díspares e gerar o inédito, tem uma função produtiva, a de inventar. 

Mas nem Kant conseguiu explicar como, exatamente, a imaginação gera algo que não existia. 

Quem chegou mais próximo de deslindar o arcano foi Koestler. A ideia nova despertaria na consciência no instante em que uma mistura de elementos, oriundos de duas matrizes independentes e viajando em sentidos distintos, casualmente se encontram. O significado seria dado por meio da “bissociação”, isto é, da analogia, da comparação, da metáfora, da categorização e da abstração. 

Um esquema engenhoso, mas meramente especulativo. Para a ciência, o “ponto de gênese” (Klee), “o momento eureca!” ou como quer se denomine a geração do novo, é um enigma que perdura.

UTILIZE E CITE A FONTE.
Koestler, Arthur (1964) The act of creation. London. Hutchinson & Co.

Matherne, Samantha (s/d). Kant’s Theory of the Imagination, Routledge Handbook of the Imagination. https://www.academia.edu/11319761/Kants_Theory_of_the_Imagination. 

Paul Klee (2002) The Nature of Creation, Works, 1914-1940. London. Lund Humphries Pub Ltd 

ÉTICA: Fontes da filosofia moral – Kant: O legado crítico.

Ética.

A Revolução Crítica, forjada por Kant, trouxe ao mundo o entendimento da verdade e da justiça como resultado da tessitura de um sentido comum, de uma dimensão de intersubjetividade própria à razão humana.

Depois de Kant, em lugar de uma verdade definida como a adequação de um enunciado à realidade em si, e do ditame de um fim absoluto de justiça, passou-se a demandar uma aferição de verdade e de justiça que tenha legitimidade universal. 

Muitos duvidam de que seja possível alcançar este fim, mas não podem negar que a razão prática dispõe dos meios e da capacidade para estabelecer objetivos suscetíveis de validação para todos, e não somente para aqueles que os propõem. 

A argumentação de Kant evidencia que o determinismo, seja na forma natural do destino biológico, seja na forma espiritual da vocação histórica, é falso. Mostra que as ideias de vida como tarefa inevitável a realizar, ou como resultado de uma dialética infalível são improváveis. No duplo sentido de que são meras aspirações e de que não podem ser provados. 

A filosofia kantiana deixou como herança mais sensível para a reflexão moral da atualidade ter dado alento à ética de Habermas e de toda a teoria crítica; e à ética de Rawls e de todo o neo-contratualismo. 

Ainda que a poluição não nos permita mais ver o céu estrelado, ele continua sobre nossas cabeças, e se não pudemos dar com a Lei moral dentro de nós, foi a polêmica em torno dela que fez prosperar nos dois últimos séculos as discussões sobre o fundamento da ética.

UTILIZE E CITE A FONTE.
Cherques, Hermano (2011). John Rawls: a economia moral da justiça. Sociedade e Estado (UnB. Impresso), v. 26, p. 551-564.

Habermas, Jürgen. (2003). Consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro.

Habermas, Jürgen. (2013). A Ética da discussão e a questão da verdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo. Martins Fontes

Rawls, John. (1981). Uma teoria da Justiça. Tradução de Vamireh Chacon. Brasília: Editora Universidade de Brasília.

Renaut, Alain (1997). Kant aujourd’hui. Paris. Aubier

EPISTEMOLOGIA – Heurística: Kant – Invenção e descoberta.

Epistemologia.

Pawel Kuczynski – Perfect Garden

Inventar, escreveu Kant, é muito diferente de descobrir. O que se descobre já existia, embora não fosse conhecido: Colombo descobriu a América. O que se inventa não existia antes: os chineses inventaram a pólvora.

Na Crítica do Juízo, Kant explicou que a obra de gênio requer inspiração, mas não regras. As faculdades que intervêm na inventividade são a imaginação produtora (intuitiva), o acoplamento entre intuição e intelecto “livre” (não condicionado), e a faculdade do juízo.

Os descobrimentos científicos não devem ser considerados invenções porque seus métodos podem ser descritos, explicados, imitados e ensinados – a inventividade não pode ser aprendia. Não se pode aprender a ser um artista, um filósofo, um poeta, um cientista uma vez que a própria pessoa de gênio não sabe de que maneira inventa, e, portanto, não tem como formular regras para si e para os outros.

Kant também advertiu sobre o perigo inerente a dispensar o aprendizado e a investigação. Perguntou se o gênio inventivo contribui para o progresso da Humanidade de forma mais significativa do que as “cabeças mecânicas” que se apoiam no bastão da experiência.

Posição que talvez desculpe as instituições acadêmicas, as déspotas do saber estabelecido que eventualmente se abrem para descoberta, mas invariavelmente estorvam a invenção.

UTILIZE E CITE A FONTE.
Kant, Immanuel (2006). Antropologia de um ponto de vista pragmático. Trad. Clécia Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras.  § 57 - § 58

Kant, Immanuel (1952) The critique of judgment. London. Encyclopedia Britannica, Inc. [Crítica do juízo, Introdução]

EPISTEMOLOGIA: Conceito – O que é a intuição.

Heurística.

 “Com a lógica se demonstra, com a intuição se inventa.” (Poincaré)

 

Descartes definiu a intuição evidente como oposta à dedução necessária. Kant, como tudo que o intelecto experimenta com rigor, em si mesmo ou na imaginação. Schopenhauer, como percepção direta, sem mediação do conhecimento discursivo e das suas relações. O pós-idealismo seguiu Schopenhauer.

No século passado, Husserl diferenciou a intuição empírica, que capta os objetos individuais; a intuição eidética, que capta a essência das coisas; e a intuição categorial, que capta as estruturas, os padrões e os números. A intuição empírica ou individual é transformada na visão da essência [ideação] que é uma abstração [algo insubsistente por si mesmo]. De modo que, para a fenomenologia, a intuição é uma faculdade que permite perceber o todo, no sentido de que se pode examinar um objeto, uma árvore, por exemplo, de muitos ângulos, mas só a intuição permite apreendê-lo integralmente.

Contemporâneo da fenomenologia, Henri Bergson escreveu que a intuição é algo que se encontra entre o instinto e a intelecção. É o que apreendemos em um lampejo no espírito, aquilo que sabemos, mas que “não sabemos como dizer”. O intuído é o que fica na ponta da língua, o que se perde inevitavelmente na continuidade fluida do tempo, o verso melhor, que já não podemos recordar.

A definição contemporânea da intuição – faculdade interna de fazer inferências e chegar ao conhecimento de estruturas e de dinâmicas -, supera as distinções entre o sensível e o intelectual. Um longo caminho desde a filosofia Antiga e a Medieval, que deram a intuição (lat.ecl. intuitìo,ónis: imagem refletida no espelho) como ato puro da consciência, como a apreensão imediata das Ideias (Platão) e de Deus (S. Agostinho).

Esta capacidade de captar padrões e significados imediatamente do real ao intelecto permanece desde sempre no âmago do processo heurístico, que a distingue, da adivinhação, da fantasia, da inclinação, e de toda evidência.

UTILIZE E CITE A FONTE.
Bergson, Henri (2017). L’intuition philosophique – 1911, In Œuvres complètes, La pensée et le mouvant. www.arvensa. Arvensa Éditions.

Descartes, René (1989). Regras Para a Direção do Espírito [ III]. Tradução de João Gama. Lisboa. Edições 70.

Husserl, Edmond (2006). Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica: introdução geral à fenomenologia pura [I, passin, particularmente § 3] Tradução de Márcio Suzuki. Aparecida, SP. Idéias e Letras.

Kant, Immanuel (1989). Crítica da razão pura, Estética transcendental. I, 1. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa; Fundação Calouste Gulbenkian.

Paty, Michel (2005) Pensée rationnelle et création scientifique chez Poincaré. https://halshs.archives-ouvertes.fr/halshs-00004166

Platon (1981) Fedro 247a .In Platon, Obras completas (1981). Traducción y notas de Maria Araujo et ali. Marid. Aguilar S.A. de Ediciones.

Poincaré, Henri (1947). [1908]. Science et méthode, Flammarion, Paris. [137]

Santo Agostinho (2010). Confissões. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. Petrópolis. Editora Vozes

Heurística – Fantasia, o triunfo de Averróis.

Epistemologia.

No sexto volume do Kulliyat, Averróis (Córdoba, 1126 – Marraquexe, 1198) descreveu propriedades medicinais que só foram redescobertas oito séculos depois de sua morte. Há um tópico sobre as virtudes do azeite feito de “azeitonas puras e não fervidas” cuja descrição é idêntica a das publicações contemporâneas.

Isto foi possível graças à “phantasia”, uma habilidade de produção de descobertas perdida, que hoje se procura recuperar.

As fantasias são apresentações em potência de ideais e imagens sem precedentes. Diferem da imaginação, que é estéril, capaz unicamente de combinações extrínsecas. A fantasia é inteiramente intrínseca e particular. Continuar lendo