Depois de Wittgenstein: o Outro, como outro.

Ética.

Schiele

A filosofia moral, influenciada por Wittgenstein rejeita o essencialismo, a doutrina da natureza humana estática.  Afirma que, da mesma forma que as crianças captam as práticas e regras da família ou que adquirem um determinado sotaque, nós traduzimos todo conceito para o espaço-tempo social ao qual pertencemos.

Do ponto de vista não-essencialista, a eticidade decorre invencivelmente da forma de vida em que estamos imersos e da nossa inserção nela. A conduta moral é conformada pelo que, em outra chave, Bourdieu denominou de habitus: o sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações.

A comunicação instantânea intensificou o que Wittgenstein havia assinalado. Mediante abstração imaginativa, habilitamo-nos a reconhecer que outras formas de vida admitem o incesto, o assassinato religioso e práticas segregacionistas que são, para nós, desconhecidas, estranhas e repugnantes.

O problema ético que hoje enfrentamos é menos o da intolerância do que o da diluição das identidades. A destribalização – um termo criado por McLuhan – nos fez esquecer que decodificar os conceitos morais de outras formas de vida não significa que devamos as compartilhar, aceitando passivamente uma aculturação degradante.

 
UTILIZE E CITE A FONTE.
CHERQUES, Hermano Roberto Thiry (2024). Depois de Wittgenstein: o Outro, como outro. – https://hermanoprojetos.wordpress.com/2024/04/26/depois-de-wittgenstein-o-outro-como-outro/
REFERÊNCIAS:
Cherques, Hermano Roberto Thiry (2008). Métodos estruturalistas. São Paulo. Atlas
McLuhan, Marshall (1989). The Global Village: Transformations in world life and media in the 21st century. UK. Oxford University Press
Susan Hurley (1990). Natural reasons. Oxford U. Press.
Wittgenstein, Ludwig (2009) Investigações filosóficas. Tradução de Marcos G. Nontagnoli. Petrópolis. Vozes [§ 293]
Wittgenstein, Ludwig (2014). Cadernos 1914-1916. (julho 1916). Lisboa. Edições 70
Wittgenstein, Ludwig. (2005) Observações Filosóficas. Tradução de Adail Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo. Edições Loyola.

Heurística – sem intenção.

Epistemologia.

A ação e o movimento são duas coisas distintas. A diferença está em que o fato de eu levantar o meu braço ser uma ação, e o fato do meu braço se levantar ser um movimento (Wittgenstein).

As ações requerem esforço reflexivo que vá contra a tendência ao repouso. Podem ser simples – ligar uma máquina – ou exigirem um modelo interno de movimentos e deliberações (projeto). Podem ser individuais ou requerem uma atividade conjunta e coordenada. Existem movimentos reflexos, sem que aja ações correspondentes e existem movimentos que precisam ser acionados, seja em direção ao fim pretendido, seja na observância de um procedimento. O reflexivo e o reflexo (Davidson).

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Pensar o Trabalho: Ensaios Mínimos.

Notícias.

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Sumário geral do livro PENSAR O TRABALHO:

Apresentação 1
O trabalho antes do trabalho. 6
Atrahasis – Nascidos para trabalhar. 8
Prometeu – O trabalho arcaico. 10
O trabalho adâmico. 12
O trabalho grego. 14
Heráclito de Éfeso: o trabalho flui com a vida. 16
Platônica alienação. 21

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Pensar o Trabalho: Ensaios Mínimos.

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Autores citados em PENSAR O TRABALHO:

Adorno, Theodor
Agamben, Giorgio
Andersen
Anequin, J. Claval-Lévêque. & Favory, F.
Arendt, Hannah
Aristóteles
Ayto, John
Bakunin, Mikhail
Barthes, Roland
Bauman, Zygmunt
Ben-Ami, Bartal Inbal
Benjamin, Walter

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Pensar o Trabalho: Ensaios Mínimos.

Notícias.

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O trabalho é um fenômeno cultural. Sua apreciação envolve entendimentos e ênfases próprios da modalidade de coesão sócio-econômica-política em que se insere. Pensar o trabalho implica em nos colocarmos no “estado de espírito” de cânones teóricos e de representações cuja integridade e inserção metodológica são informes e instáveis.

Assim, a disposição desse livro é a de um mosaico. Um conjunto de comentários justapostos, derivados da observação direta e da literatura filosófica e profana. Cada ensaio acrescido reconfigura o mosaico, produzindo um quadro pluridimensional móvel.

O termo ensaio tem a conotação original de tentativa. O termo mínimo não é modéstia, mas constatação. O conjunto de pequenos textos que integram o livro conforma uma totalidade provisória, uma episteme, como os pixels configuram uma imagem. O modo de perceber, de conceituar, de definir e de agrupar os elementos pode e deve ser articuladoa e desarticulado conforme queira o leitor.

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Heurística – Probabilidade e estereótipo.

Epistemologia.

Wittgenstein contrapôs a explicação pelas causas à explicação pelas razões. O processo de explicação causal consiste em lançar uma hipótese e a testar. Essa é a forma mais comum das pesquisas acadêmicas. Já o processo de explicação pelas razões consiste em pensar o que pode haver para que x seja x. Essa a forma mais comum de pensamento reflexivo. O primeiro é objetivo e externo, o segundo, subjetivo e interno.

A explicação pelas razões segue a regra “gramatical” (dos conceitos), que difere da regra da natureza (ou lei). O termo gramatical – do grego grama, o que está escrito – reporta às instruções lógicas, como as de um jogo. Funciona no modo das demonstrações matemáticas, que se baseiam em princípios e cujas normas satisfazem uma narrativa com sentido. Aplica-se ao objeto mutante e incerto.

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O trabalho fetiche.

Trabalho.

Adolph von Menzel

Wittgenstein chamou a atenção para o fato de que as hipóteses lançadas pela ciência balizam a formação de expectativas. São redutoras. Obrigam a que o sentido e verdade de uma asserção sejam imputáveis a uma estrutura objetal (dado, fato, percepto, …) unívoca, litúrgica, fetichizada.

Na esfera das ciências sócio-humanas, as epistemologias, alicerçadas sobre o mito da inexistência de vieses entre o sujeito cognoscente e o objeto, o efeito redutor determinou que o referente “trabalho” fosse substituído pelo seu conceito. Como as notas bancárias, que representam simbolicamente o valor comercial das coisas, mas nada têm a ver com seu valor intrínseco, econômico ou estimativo, o trabalho, tornado símbolo, desconectou-se da atividade humana, dispersa e inefável, de geração de bens, serviços e ideias.

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O embargo à nova filosofia.

Epistemologia.

Entre as diversas correntes filosóficas que lograram sobreviver à virada do milênio, existe um ponto de concordância: o adestramento e o método obstruem as competências heurísticas.

O adestramento erige sansões normativas contracognitivas. Impõe rituais que interditam ver além do já sabido. Induzem a reunir os conceitos em uma representação unívoca e coercitiva.

O método despreza a intuição e a fantasia. Embarga tanto a crítica do real como o exame dos malogros das formas estabelecidas de o pensar.

O ato heurístico é uma transgressão e uma transcendência. Para restaurar a capacidade inventiva, devemos deslocar nosso olhar das formações tidas como naturais e inevitáveis e romper com os saberes instituídos. A reflexão precisa reconquistar a sua castidade. Voltar à filosofia que, segundo Wittgenstein “… é aquilo que é possível antes de toda descoberta e invenção”.

 

UTILIZE E CITE A FONTE.
CHERQUES, Hermano Roberto Thiry, 2023 – O embargo à nova filosofia. – A Ponte – https://hermanoprojetos.wordpress.com/2023/06/05/o-embargo-a-nova-filosofia/
REFERÊNCIAS.
  • Gargani, Aldo Giorgio. Le savoir sans fondements. Traduction Charles Alunni. Paris. Librairie Philosophique J. Vrin. Pag. 11
  • Wittgenstein, Ludwig (1976) Los Cuadernos Azul Y Marrón. Trad. Francisco Gracia Guillen. Madrid. Editorial Technos
  • Wittgenstein, Ludwig Investigações filosóficas I, § 126

Heurística – entre a intenção e o reflexo.

Epistemologia.

Existe um hiato entre a ação e o movimento. O que os diferencia é exemplificado pela discrepância entre o fato de que eu levanto o meu braço, que é uma ação, e o fato de que meu braço se levanta, que é um movimento. (Wittgenstein)

É possível haver movimento sem que aja uma ação. Existem movimentos reflexos, sem representação explícita das consequências, e existem movimentos que demandam serem acionados, seja em direção ao fim pretendido, seja no sentido de um procedimento a ser observado. Uma ação pode ser simples – ligar uma máquina – ou requerer um modelo interno de sequência de debates e movimentos (projeto). Pode ser individual ou solicitar movimentos coordenados.

As neurociências distinguem duas modalidades de ação. A primeira é voluntária, intencional, antecipadora do efeito e deflagrada endogenamente. A segunda é reativa, diz respeito a uma escolha, responde a um estímulo e é induzida exogenamente. O que incita as duas modalidades de ação se localiza em diferentes partes do córtex pré-frontal. Pouco mais se sabe sobre isso, além de que a forma de ação voluntária-antecipadora é mais lenta do que a forma reativa-eletiva. (Khamassi)

Os atos de descobrir e o inventar têm raízes semelhantes. A diferença entre eles está em que a descoberta se liga ao agir reativo, enquanto a invenção corresponde à esfera da causalidade fortuita [event]. O reflexo e o reflexivo (Davidson).

Nenhum dos saberes acima explica satisfatoriamente o evento heurístico, a ação produzida sem intenção.

UTILIZE E CITE A FONTE.
CHERQUES, Hermano Roberto Thiry, 2023 – Heurística – entre a intenção e o reflexo. A Ponte – https://hermanoprojetos.wordpress.com/2023/05/17/heuristica-entre-a-intencao-e-o-reflexo/
REFERÊNCIAS.
Davidson, Donald 92001) Essays on Actions and Events. Oxford University Press, Nc, USA.
Khamassi, Mehdi & Élisabeth Pacheric (2018). L’action, In, La cognition : du neurone à la société. Thérèse Collins, Daniel Andler et Catherine Tallon-Baudry (dir.). Paris. Gallimard
Livet, Pierre (2005). Qu’est-ce qu’une action? Librairie Vrin
Wittgenstein, Johan Joseph Ludwig (1967). Zettel. Oxford, Blackwell.

Entre intenção e gesto.

Ética.

Maigritte

Bentinho age como age porque pensa que Capitu lhe é infiel. O garçom de Sartre atua da maneira que acredita que os garçons se comportam. O agrimensor de Kafka se conduz desta ou daquela forma conforme espera ser punido ou recompensado.

Na literatura e na vida cotidiana agimos como se as condutas tivessem uma lógica clara e determinável. Tendemos a explicar as ações, nossas e alheias, atribuindo-lhes intencionalidades. Essa predicação é sem fundamento.

Já em 1649, Descartes se via às voltas com o problema da interação entre a alma – aquilo que anima as ações -, e o corpo, o autômato de carne e osso que age. Não a resolveu. Tampouco é satisfatória a mecânica de Hegel, a duvidosa hipótese de que Cesar lutava por suas mulheres e seus cavalos, e que isto, dialeticamente, havia erigido o Império Romano. O materialismo histórico e o positivismo contornaram a intencionalidade.

Evitaram discuti-la.

Husserl disse que a intencionalidade é imanente ao sujeito, que os pensamentos emergem de um sistema auto organizado que governa o ser humano e a sua resposta ao meio. Heidegger notou que nosso agir nem sempre é propositado. Wittgenstein, que o cérebro não é um homúnculo que observa as experiências sensíveis, como se as visse em um monitor, para agir em seguida.

Os pensadores que formaram a cultura filosófica que chega ao século XXI concordam em essência, mas não oferecem resposta prática à questão entre o que é deliberado e o que é acidental na conduta humana. Ou sequer a consideram. E, no entanto, o ponto não é menor. No interstício entre intenção e gesto permanece o insondável, e o insondável não pode ser o fundamento da moralidade.

 

UTILIZE E CITE A FONTE.
CHERQUES, Hermano Roberto Thiry, 2021 – Entre intenção e gesto. A Ponte: pensar o trabalho, o trabalho de pensarhttps://hermanoprojetos.com/2021/04/07/entre-intencao-e-gesto/
 
 
REFERÊNCIAS:
 
Chico Buarque e Ruy Guerra (1973) Fado tropical. In Hollanda, Francisco Buarque de & Guerra, Ruy (2000) Calabar: O Elogio da Traição. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira.
Descartes, Renée (2019) As paixões da alma. Tradução de Newton de Macedo . Mimética. E-book Kindle
Hegel, Georg Wilhelm Friedrich (1999). Filosofia da História. 2ª edição. Trad. Maria Rodrigues e Harden. Brasília. Editora da UnB.
Heidegger, Martin (2012). La idea de la filosofía y el problema de la concepción del mundo. Ciudad de Mexico. Herder Editorial
Husserl, Edmund (2014) Investigações lógicas: prolegômenos à lógica pura. Tradução Diogo Ferrer. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
Machado de Assis, Joaquim Maria (1994). Don Casmurro, in Obras Completas de Machado de Assis, vol. I, Nova Aguilar, Rio de Janeiro
Sartre, Jean-Paul (1986). L’imaginaire (1940), éd. par Arlette Elkaïm-Sartre, Paris, Gallimard
Wittgenstein, Ludwig (2009) Investigações filosóficas. Tradução de Marcos G. Nontagnoli. Petrópolis. Vozes [§ 293]

O ser abstrato e inconsútil das ciências sociais.

Epistemologia.

hull5

Todo ser humano é dotado de razão, mas a capacidade intelectiva e a destreza social são diferentes para cada pessoa.

As estruturas como as do parentesco, da vida social, das formas de educar tendem a ser tomadas como naturais. Não o são. São impessoalidades constituídas socialmente. São recalques adquiridos internamente a “formas de vida”, no sentido de Wittgenstein dá ao termo.

A maior parte das nossas ações são inconscientes, ou por serem reflexas, como as expressões do rosto; ou por serem miméticas, como a forma de estarmos em repouso. O “núcleo comum” das faculdades intelectuais é pessoal em intensidade e indeterminável o seu conteúdo.

Por isso, as ciências sócio-humanas têm pouco a dizer sobre o ato heurístico. Identificam e descrevem o que há de comum, o que há de reflexo e o que há de mediano. Esquadrinham o consciente coletivo. Mas desconsideram o âmago irreplicável dos espíritos singulares.

UTILIZE E CITE A FONTE.
CHERQUES, Hermano Roberto Thiry, 2021 – O ser abstrato e inconsútil das ciências sociais. A Ponte: pensar o trabalho, o trabalho de pensarhttps://hermanoprojetos.com/2021/03/31/o-ser-abstrato-e-inconsutil-das-ciencias-sociais/
REFERÊNCIAS:
Berlin, Isaiah (2000). The proper study of mankind: An anthology of essays. New York. Farrar Straus Giroux.
Kant, Imanuel (2005). Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Valerio Rohden e Antonio Marques. Rio de Janeiro. Forense Universitária (I, I, §4)
Wittgenstein, Ludwig (2009) Investigações filosóficas. Tradução de Marcos G. Nontagnoli. Petrópolis. Vozes [§ 293]

Fontes da filosofia moral: Nietzscheniana.

Ética.

As postulações morais egressas dos diversos campos da humanidade mantêm-se na superfície dos fatos. Tratam de eclipsar as questões mais difíceis. Evitam a suspeição analítica e epistemológica sobre os julgamentos de valor.

E, no entanto, hoje, mais do que nunca, é necessário lançar dúvidas sobre nossas convicções éticas. É urgente debater as nossas crenças sobre a racionalidade das condutas, a boa vontade geral e a imparcialidade dos juízos morais.

O transtornado mundo em que vivemos não pode prescindir dos que se disponham demonstrar a fragilidade dos argumentos sancionados. Não para destruí-los, mas para abrir caminho a vidas esclarecidas.

Um ceticismo psicologicamente e historicamente situado seria benéfico para romper com o marasmo das verdades aceitas e dos academicismos estabelecidos. Precisamos restaurar Nietzsche, cujo legado não se limita a ter inspirado pensadores como Heidegger, Wittgenstein, Buber, Freud, Menken ou Foucault. Nem se restringe a ter demonstrado a impossibilidade de uma ética isenta. Cujo legado maior foi o ter evidenciado o imperativo de uma filosofia moral lúcida.

 

UTILIZE E CITE A FONTE.
CHERQUES, Hermano Roberto Thiry, 2020 – Fontes da filosofia moral: Nietzscheniana. A Ponte: pensar o trabalho, o trabalho de pensarhttp://hermanoprojetos.com/2020/09/16/fontes-da-filosofia-moral-nietzscheniana/

PERPLEXIDADES: A dissolução transcultural.

Perplexidades.

Vladimir Kush

O século XXI já vai alto, e nós, que nele chegamos adultos, conhecemos pessoas que compartilhavam tradições, que dominavam, ao mesmo tempo, as línguas ocidentais modernas e idiomas como o ídiche, o bretão, o guarani.
Infelizmente, ao longo do século passado, as culturas minoritárias ou vencidas foram pasteurizadas, a ponto de não mais serem reconhecíveis.

Dos catalães aos maoris, os exemplos se multiplicam. Se, por exemplo, tomarmos a civilização asquenaze, esmagada pela shoah, esvanecida por Israel, encontraremos Marx, que ainda buscou inspiração na justiça social dos Profetas; Durkheim, que denunciou a anomia do desregramento social; Freud, que praticou a exegese talmúdica, que não é a do texto, mas a da palavra; Kafka, que reinventou a condenação divina; Einstein, que perseguiu a unidade bíblica do cosmos; Wittgenstein, que redescobriu que todos somos estrangeiros fora do nosso idioma íntimo, e muitos outros filósofos, músicos, literatos, artistas.

O que tinham em comum essas pessoas não era só o gênio. Era a biculturalidade. Marx e Wittgenstein abandonaram o judaísmo e os demais não eram religiosos. Tampouco, à exceção de Durkheim, conheciam bem a civilização dos asquenazim da Europa central e oriental. Mas os resquícios dos traços culturais são evidentes nos temas da justiça social, da moralidade do trabalho, da interpretação da psique, do terror de viver, da unificação das forças da natureza, e dos jogos de linguagem. Estes intelectuais ainda puderam combinar a tradição herdada com o espírito das suas respectivas épocas e lugares.

Até meados do último século, o cross-cultural enlargement representou imensa fonte de enriquecimento. No mundo em que vivemos, propende a sucumbir. A conservação de temáticas e interesses se dissolve rapidamente na transculturalidade da Internet. A circulação de informações e a homogeneização dos conceitos diluem e mesclam esferas, teorias, ideologias, crenças que se perdem na universalidade comunicacional.

O deplorável é que o esquecimento de sestros culturais não pode ser reparado. As expressões e saberes que se extinguem não podem ser restituídos ou compensados. Neste momento, parece ser inevitável que a web venha a nos condenar à sonolência da uniformidade monocórdica.

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EPISTEMOLOGIA: A academia – entre o medo e a angústia.

Epistemologia.

Edvard Munch – Anxiety 1894

As desavenças entre o positivismo e o historicismo, que aborreceram o final do século passado, levaram os saberes instituídos à um estado de perplexidade.

Por mais que tenham sido debilitados, nem o positivismo veio à óbito, nem a anunciada morte do historicismo ocorreu. Ao contrário. Um e outro partido seguem regurgitando suas frágeis razões.

Náufragos em meio à tormenta, os praticantes nas ciências sócio-humanas se equilibram em uma dinâmica que oscila entre o medo e a angústia.

O medo faz com que tentem validar a reflexão na positividade descarnada dos fatos e dos experimentos. Contraditoriamente, faz com que procurem refúgio na linhagem que vem do Círculo de Viena e que deveria ter terminado em Wittgenstein, ou, no máximo em Quine.

A angústia, no sentido de Kierkegaard, de aperto, de estreitamento, faz com que se aferrem à filosofia com sua carga histórica. Simultaneamente, faz com que a neguem, aderindo à linhagem que procede de Nietzsche e que chega aos que procuram conciliar uma teoria geral do Ser com o cotidiano das existências.

A dialética da angústia e do medo deixa sequelas. Entre elas o abandono da reflexão sobre questões insolúveis, como a das singularidades, a das formas, e a do acaso.

O que é inquietante.

Aquele que deixa de procurar o inencontrável e de pensar no insolúvel está fadado claudicar entre a mera constatação e o reencontro com o já sabido.

UTILIZE E CITE A FONTE.

ÉTICA: A dissidência moral.

Ética.

No mundo integrado das grandes empresas, o arco de tensões entre o monitoramento externo (o que “eles” fariam?) e a proximidade interna (o que “nós” faríamos?) confunde as escolhas morais.

Bureaucracy por Leon Zernitsky

Como em toda e cada cultura, o meio corporativo apresenta dissonâncias e contradições nas escalas e hierarquias de valores. Estas escalas e hierarquias são recebidas acriticamente. Há, mesmo, sociedades e comunidades que sequer conhecem a autotematização.

Além de permeáveis a influências externas, as culturas são internamente contraditórias. O meio que desovou Hitler também gerou Freud, Wittgenstein, Mahler, Rilke, Kafka e o Jugendstil. A mesma melodia de Beethoven serviu para inspirar a solidariedade nazista, as promessas comunistas e as banalidades do hino da ONU.

Costumamos pensar que todas as organizações são como a nossa, que todas as comunidades são como a nossa, que todas as sociedades são como a nossa. Costumamos pensar que os outros têm os mesmos valores morais que os nossos. Logo aprendemos que não é assim. Que, para “eles”, nós somos o “Outro”, e que a dissidência moral é a constante a ser assimilada.

 

UTILIZE E CITE A FONTE.
Plessner, Helmuth (2014). Plessner’s Philosophical Anthropology. Edited by Jos de Mul. Amsterdam. Amsterdam
University Press B.V.

Steiner, George (2012). La poesía del pensamiento. Trad. De Maria Condor; Madrid; Ediciones Siruela [Kindle
edition]

EPISTEMOLOGIA: Heurística – Wittgenstein: Assim é, se lhe parece.

Epistemologia – Heurística.

Ilustrador polonês Igor Morski

Na conversão do Tractatus para as Investigações, Wittgenstein levantou um ponto irrefutável: as epistemologias geram representações antecipadas daquilo que se propõem a investigar.

De fato, os métodos epistemológicos prefiguram um quadro dotado da faculdade de orientar as manobras destinadas às garantirem como estabelecedoras da verdade.

Desde o mais delirante idealismo até o materialismo mais fideísta, as epistemologias disciplinam e ordenam o real. Constrangem o fato e o dado a obedecerem a esquemas conceituais, estratégias e atos de investigação recebidos acriticamente e incorporados aos hábitos dos pesquisadores.

O argumento de Wittgenstein esbate qualquer pretensão de descoberta e invenção das epistemologias. Não só porque assumem como patente uma realidade autoconstituída, mas porque estão atadas a determinações arbitrárias do como investigar, do que se deve investigar, e do que é possível ser encontrado.

Do ponto de vista heurístico, as epistemologias não diferem da mítica religiosa e das lendas pré-científicas.

UTILIZE E CITE A FONTE.
Gargani, Aldo Giorgio (2013). Le savoir sans fondements. Traduction Charles Alunni. Paris. Librairie Philosophique J. Vrin.

Wittgenstein, Ludwig. (2005) Observações Filosóficas. Tradução de Adail Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo. Edições Loyola.

ÉTICA: Wittgenstein – A consciência moral e o escaravelho.

Ética.

Mike Libby Sculpture

As lamentações sobre a perda de referencial ético são despropositadas e inócuas. As referências externas – os deuses, o proletariado, o inconsciente coletivo, o povo, o sacro – não se perderam. Caducaram.

Na atualidade, é quase consenso que os paradigmas da filosofia moral não estão fora de nós, mas em nós. A resposta para o sentido ético não depende da dedução nem da revelação, mas da consciência.

Infelizmente não se tem certeza, nem mesmo um assentimento parcial, sobre o que é ou possa vir a ser a consciência.

Wittgenstein deu o exemplo do escaravelho.

Imagine que cada pessoa ganhe ao nascer um estojo com algo dentro, que só nós mesmos podemos ver e saber do que se trata. Em cada estojo individual há um pequeno objeto: uma pedra, um inseto, uma folha e assim por diante. Um ser único e incomparável.

Wittgenstein denomina de escaravelho este conteúdo do nosso e de todos os demais estojos.

O escaravelho é a nossa consciência. À medida em que amadurecemos, conhecemos cada vez melhor o nosso escaravelho. Quanto aos escaravelhos dos outros, supomos que sejam como o nosso, mas, de fato, não sabemos nada sobre eles.

O argumento de Wittgenstein é que não há uma consciência que seja como a outra. Não há um escaravelho genérico, uma consciência em abstrato. Por isto, não existe, nem pode existir, uma fonte, um referencial externo para a ética. Estamos sós, com a nossa consciência. O que podemos fazer é construir um sentido para a vida. E agir de acordo.

UTILIZE E CITE A FONTE.
Cohen, Martin (2010) El escarabajo de Wittgenstein y otros 25 experimentos mentales más. Trad. De Gabriel Arnaiz y Francisco Cerén. Madrid. Alianza editorial.

Wittgenstein, Ludwig (2009) Investigações filosóficas. Tradução de Marcos G. Nontagnoli. Petrópolis. Vozes [§ 293]

ÉTICA: Fontes da filosofia moral – G.E.M. Anscombe.

Ética.

Em um texto de apenas 16 páginas elípticas, Gertrud Elizabeth Margaret Anscombe, (Irlanda, 1919; Cambridge, 2001) fez retornar o tema da virtude ao centro das preocupações morais na segunda metade do século passado.

Publicado em 1958, o ensaio Modern Moral Philosophy critica as orientações, dominantes à época, para os deveres morais em detrimento do bem; para a imparcialidade, em detrimento da comunidade; para a teorização, em detrimento da sensibilidade.

Discípula e tradutora de Wittgenstein, Anscombe desenvolveu a action theory, uma conjectura que retoma a intencionalidade (Why?) como chave da ética. Titular de Cambridge, abonou a integridade das expressões irracionalistas, isto é, das filosofias que sustentam o primado da intuição sobre o conceito, como em Bergson, ou da ação sobre o pensamento, como nas várias formas de pragmatismo.

O legado de G.E.M. Anscombe para o século XXI foi o de ter alentado as correntes antiteóricas da ética, tanto as religiosas como as progressistas, que reivindicam a precedência da pessoa e da coletividade sobre a ideologia e a norma. Inclusive a norma legal.

 

UTILIZE E CITE A FONTE.
Anscombe, G.E.M. (1981) Collected Philosophical Papers. Minneapolis, MN. University of Minnesota Press.

Anscombe, G.E.M. (1963) Intention. Oxford: Blackwell.

ÉTICA: Fontes da filosofia moral – Ayer: emotivismo e expressivismo.

Ética.

O professor Sir Alfred Jules Ayer (Londres, 1910-1989) foi afiliado ao empirismo lógico. Com base na distinção de Hume entre as proposições que enunciam relações entre ideias e as que expressam juízos de fato, sustentou que os julgamentos éticos não têm sentido cognitivo fundado na observação.

Ao cabo de uma extensa reflexão, concluiu que carecem de significado as fórmulas da moral que não são analíticas (que não expressam relações entre ideias), ou sintéticas (que não enunciam juízos de fatos). De modo que os juízos de valor da ética seriam apenas “expressões de emoções”. Continuar lendo

Nota

A ordem do querer dizer.

Epistemologia & Método.

coruja

A previsibilidade do entendimento e da internalização dos signos é uma aspiração que está longe de ser alcançada. O que está fora de alcance não é somente a complexidade da mente humana, mas a sintetização computacional das interações sígnicas. Por mais que os devotos das epistemologias em vigor insistam, a equalização do processo de entendimento esbarra no distanciamento entre a recepção do percebido e sua compreensão. Continuar lendo